Peça: Ariano e a “flor vermelha que encanta”
CENA 01
(Ariano está sentado em sua cadeira de balanço de madeira. No chão, um tapete vermelho adorna o seu casarão.
Ele está balançando na cadeira e lendo um convite que acabara de chegar. O convite tem um envelope grande com detalhes de flores vermelhas sob a capa. Ariano está pensativo, em silêncio e de olhos fixos no convite. Alguém bate à porta. Ele se levanta, vai até a porta e a abre.
Dona Rosinha.
(Entra sem mesmo cumprimentar Ariano, e fecha a porta e já vai dizendo)
— Ei, Ariano, eu vim aqui porque tô entediada. Não aguento mais, preciso dizer um monte de coisas a você que você não vai gostar, não.
Ariano.
(Leva a mão à cabeça e diz)
— Bom dia… Se eu não vou gostar, então não diga.
Dona Rosinha.
Gostando ou não, lá vai. Vem cá, homem, você nasceu em junho, não é?
Ariano.
— É.
Dona Rosinha.
— Dia 16 não foi?
Ariano.
— Foi.
Dona Rosinha.
Então, você é do signo de Gêmeos, não é?
Ariano.
— Ééé.
Dona Rosinha.
Tá, vendo, então estou certa. Você sabe que quem é do signo de gêmeos tem duas caras, não é?
Ariano.
(Caminha até a porta e a abre)
— Olha aqui, Dona Rosa, Rosinha ou, os raios que o partam. Você acha mesmo que, se eu tivesse duas caras, eu ia usar essa aqui? Pode se retirar e ir para as bandas de onde veio. Não quero ninguém me empestiando aqui em casa, não.
(Dona Rosinha se enfurece, sai resmungando e bate à porta.)
(Ariano se dirige à mesa, puxa a cadeira, abre seu livro e toma o copo de água que está sob a mesa)
CENA 02
Zélia abre a porta e entra em cena. Ariano está sentado à mesa, lendo um livro. Zélia caminha pela sala, ajeitando algumas coisas. A atmosfera é tranquila. Eles conversam.
Ariano passa a mão sob a cabeça, retira o suor. (Coloca o livro na mesa, pensativo.)
— Zélinha, esse calor de hoje está demais. Saudade de quando a gente pegava aquele ventinho fresco nas noites de São João, lá em João Pessoa…
Zélia.
(Sorri, enquanto arruma algo sobre a estante)
— É verdade. Ariano. Hoje está um forno.
Ariano.
(Sorri de leve)
— E, tu nem sabe, a marmota da Dona Rosinha veio aqui falar aquelas coisas dela… Se meteu a falar de signo! Disse que nasci em junho, sou geminiano e tenho duas caras.
Zélia
(Curiosa)
— E o que você respondeu?
Ariano
(Com um sorriso maroto)
— Zélia, você sabe muito bem que eu gosto de gente mentirosa e doida, mas ela é insuportável. Então, respondi que “Se eu tivesse duas caras, tu acha que eu ia usar essa aqui?”
(Os dois riem juntos.)
Zélia
(Ainda rindo)
— Ariano, tu não presta!
(De repente, a campainha toca de forma intermitente e desesperada.)
Zélia
(Com expressão preocupada)
— Deve ser ela de novo!
Ariano
— Se for ela de novo, vou precisar de um exorcismo, não de uma conversa. Valei-me, nossa senhora.
(Zélia vai até a porta e abre. Entram em cena de uma vez só, quase atropelando Zélia: Padre João com a mão erguida. Chicó, entra segurando seu chapéu de couro, João Grilo no caminhar derruba seu chapéu de palha de tão apressado que está. Euricão Árabe traz consigo a sua porquinha em mãos. Dona Margarida está com um vestido de flores, entra ainda seu marido Dodó)
Padre João
(Berrando à frente do grupo e gesticulando bênçãos a Zélia)
— A benção pra senhora, dona Zélia! Cadê Ariano?
Zélia
(Tentando organizar a bagunça)
— Gente, gente! Vamos com calma, não precisa dessa confusão!
Ariano
(Do fundo, olhando para o tumulto)
— Valei-me, Nossa Senhora! O que esse povo todo tá fazendo aqui?
(Padre João entra apressado e vai direto até Ariano, já começando a falar sem esperar.)
(Padre João continua a gesticular sem parar dando a benção a Ariano )
(Ariano não se contém e sorri de improviso)
Padre João
— Ariano, venho aqui, com todo respeito e humildade, pra convencer vossa mercê a ir pra Barueri receber o prêmio da “flor vermelha”. É um bom dinheiro e precisamos pra reformar o altar da igreja. O Bispo e a comunidade inteira já estão contando com você.
Euricão Árabe
(Interrompendo, exaltado, levantando a porca para o céu)
— Dinheiro pro altar? Só se for altar de ouro para mim! Querem me deixar pobre? Nem pensar! Santo Antonio, me protege desse padre esperto. Vamos guardar o dinheiro na minha porquinha, ela é mais segura que o dinheiro na mão dele, ariano.
João Grilo
(Rápido e esperto, interrompendo Euricão)
— Para com esse mimimi, seu Euricão engole cobra! Esse prêmio já tem dono: é meu e da Dona Zélia.
(Euricão se enfurece, e a confusão é contida por Dodó e Dona margarida que ficam segurando Euricão.)
João Grilo
Veja bem, Zélia, nós podemos comprar telas e tintas de muitas cores pra expressar e valorizar ainda mais nosso povo nordestino. E outra, podemos juntar tudo e comprar itens para uma boa tapioca com carne de sol, não é, Zélia? Tô até sentindo o cheio.
Zélia
(Com a calma de sempre e com voz baixa, mas firme)
— Pode para aí, João Grilo. Não me meta nessa arenga.
João Grilo
(Chega mais perto de Ariano)
— Ariano, Ariano. Vamos junto, homem de Deus. E olha, é a cidade de Barueri, que quer dizer Rio encachoeirado. É lá pras bandas de São Paulo, cidade grande. Tem muito comércio e fabriqueta para nos comprar tudo de bom com o dinheirinho do prêmio.
— Também fiquei sabendo pelo padre, que vai te banquete e muita comida boa, ariano. Vai ter “coquele”.
Ariano.
(Leva a mão na cabeça e fica meio desorientado)
— Minha nossa senhora, que confusão. Padre, prêmio, altar, coquele… Eu tô é perdido!
Euricão
(Se acalma, encara João Grilo, bravo, mas logo relaxa)
— Engole-Cobra, o quê? Eu vou é pelo coquele! Mas com esse nome, tô desconfiado…
Chicó
(Com sua costumeira sabedoria popular)
— Pois é, seu Euricão! Num, custa nada ver se a comida é boa. E o senhor podia ajudar a arrumar umas roupas pra a gente ir bonitinho, né?
Euricão
(Euricão dá um passo para trás.) Arregala os olhos, suas sobrancelhas erguem e a boca abre com um “o” de surpresa.
— Ah, meu Santo Antônio! Tá querendo que eu pague as roupas agora também? Pode parar!
(Euricão alisa a porquinha em seus braços)
CENA 3
A confusão aumenta, todos começam a falar ao mesmo tempo. Zélia tenta acalmar o tumulto.
Zélia.
(Com o rosto vermelho de nervoso)
— Eita, gente, vamos botar ordem nesse terreiro! Não é assim que as coisas se resolvem.
Chicó
(Seus olhos arregalam, ficam andando de um lado a outro, e levanta e move os braços para todos os lados, muito, preocupado e começa a gaguejar).
— Táááá vendoo aí, estão até perturbando dona Zélia! Eu nem quero o dinheiro, quero só ir ver a estátua de São João Batista, meu salvador.
João Grilo
(Com fome)
— OXI, Chicó, que estátua é essa, esquece isso, homem de Deus! Pensa na comilança que vai ter por lá!
Chicó
— Isso é uma história que me contaram que quando eu era pequeno eu vi a imagem de São João Batista em um sonho. No sonho, ele estava vestido e me dizia que ia me encontrar e iria fazer uma revelação. No sonho, eu roguei para meu Jesus Crisitinho para ser coisa das boas. Então estou matutando aqui, se veio esse convite. E lá na cidade, tem a estátua do fundador bem no centro. É uma mensagem. Tenho certeza que lá eu vou ter uma revelação! O padroeiro vai me ajudar e vai me dar algo muito de bom, tenho certeza.
Euricão
(Com os olhos brilhando, interrompe e muda a trajetória do assunto.)
— É isto mesmo, Dona Zélia, tem que acalmar e resolver tudo. A senhora tem que convir que se vai ter comilança? Agora, sim, o Ariano tem que concordar em ir! Vamos comer feito um boi!
(Ariano, até então calado, observa tudo com calma.)
Ariano.
(Pensativo, leva novamente as mãos à cabeça )
— OXI, que povo doido. Será que essa viagem vale a pena mesmo?
Dona Margarida.
(Tomando a frente e se aproximando de Ariano)
— Arianinho, eu preciso ir! O João Grilo, quando estava lá em casa, à noite, disse que na cidade tem a tal da fonte Cunhatã.
(Ela olha e aponta para João Grilo)
Ele me disse ainda que ela tem poderes mágicos. Parece cade quê, ela foi feita para homenagear as mulheres e tem três estátuas: uma moça, uma gestante e a mãe.
Parece que sô a moça, e se visitar a fonte com ele depois vou ficar gestante e é o que eu preciso!
Dodó
(Brabo, grita)
- Opa pera lá, cê disse que era comigo!
Dona Margarida
(Ela passa a mão sobre Dodó, alisando-o)
- Calma, querido, foi só um engano. Errei de nome só.
Dodó
(Empolgado dirige a voz a Ariano )
- É verdade Ariano, nós estamos precisando de uma força, precisamos de um menino. E depois de conhecer a fonte quermos ir lá para as bandas da praça das Bandeiras.
(Leva a mão ao rosto com tom pensativo e feliz)
- Eu amo as bandeiras. Disseram que as bandeiras de lá são enormes, quero tirar um retrato com vocês: Margarida, o padre e a bandeira do Recife e da Paraíba.
Dona Margarida
(Cochicha com as mãos sob a boca)
- Meu Jesus, desse mato ai, não sai coelho.
Padre João
(Padre João levanta a mão, toma a frente e tenta retomar o controle.)
— Gente, gente, o importante é o prêmio! Ariano, eles vão pagar tudo: avião, hotel, comida e ainda o prêmio em dinheiro pra a reforma do altar! Da para ir com todo mundo, é para lá de bão.
Ariano.
(Desanimado)
— E eu vou não. Se for de avião, não vou mesmo. Esqueça. Tenho medo desse bicho.
Chicó
(Aliviado)
— Se for de avião, eu também vô não! Tenho medo de tudo! Sou um homem fraco.
João Grilo
(Zombando)
— Deixe de medo, Chicó! Bora pegar esse prêmio! A gente merece!
Pedro Quaderna
(Pedro Quaderna finalmente se manifesta.)
— Se for de carro, ariano, é mais perigoso. Pode cair numa ribanceira, num buraco…
Ariano.
(Com firmeza)
— E se for de avião, o buraco acompanha a gente em tudo! Vô não.
Padre João.
(Padre João, exasperado, levanta as mãos.)
— Ô, meu Deus! Vamos de carro então! Só assim a gente vai conseguir reformar o altar. Vamos eu, Ariano, Zélia, Chicó e João Grilo. Partimos logo, antes que seja tarde!
CENA 4
(A confusão se instala novamente, com empurrões, muito falatório e discussões)
Euricão
(Com determinação)
— Então, leva eu e a Margarida!
Dodó.
(Ofendido)
— Oxi, já fiquei fora? Isso é um absurdo! E olha esse atentado do João Grilo querendo ficar com minha Margarida.
Dona Margarida.
(Pega no braço de Ariano)
— Me leva, Arianinho.
João Grilo
(Tentando amenizar a situação, percebe o desespero de todos e começa a rodear a todos gesticulando com as mãos aos céus)
— Valei-me, Nossa Senhora, Dodó! Homem de Deus. Não vai ter perigo algum! Fique tranquilo.
— E seu Euricão, o Chicó sonhou que nós íamos ganhar o prêmio e trazer ele pra você colocar na sua porquinha. Não é, Chicó?
(Chicó, desconfiado e visivelmente desconfortável, abaixa a cabeça.)
Euricão
(Apontando para Chicó, brabo)
— Isso é verdade, Chicó?
Chicó
(Em voz trêmula, sem muita convicção)
— Não sei, só sei que foi assim…
Ariano.
(Observa tudo com paciência, suspira e levanta-se da mesa.)
— Pessoal, vamos fazer o seguinte: eu vou pensar sobre isso. Mas, enquanto isso, que tal a gente tomar um suco de graviola? Porque eu descobri que não gosto de café. Café quente queima a boca, frio é ruim.
— E tem o bolo de rolo que a Zélia fez.
(O ambiente se transforma. Todos se animam com a ideia. Zélia começa a servir o café, e a cozinha logo se enche de risadas e conversas animadas.
CENA 5
(Todos sentados ao redor da mesa, saboreando o bolo de rolo e o café. Ariano se aproxima de Zélia e cochicha no ouvido dela.)
Ariano.
(Sorrindo, baixinho)
— Amor, se eles continuarem assim, parece que vou pegar esse avião. Esse povo não vai me deixar em paz.
Zélia.
(Rindo discretamente)
— Eu não vô, não. Mas quem sabe essa viagem não acaba sendo uma boa aventura pra você e todos eles?
Ariano.
(Brincalhão, mas pensativo)
— Pode ser, minha flor. Mas com essa gente toda em volta de mim, possivelmente vou acabar tão doido quanto eles!
(Pensa novamente e fixa o olhar na Zélia)
— Essa tal de Barueri, eu fiquei sabendo que foi fundada pelos jesuítas, de herança e língua do que mais amo, o qual é a língua portuguesa. O parque das bandeiras mostra o que temos de melhor em nosso país, os quais são todas as cores e povos.
Chicó, mentiroso que só, me disse que lá e conhecido pela hospitalidade, receptividade e felicidade, e é melhor ir pessoalmente conferir.
(Zélia, com as mãos na cintura, olha para o grupo. O bolo de rolo já está quase no fim, e sorri.)
Zélia.
(Com um tom carinhoso e divertido)
— De onde toda essa gente saiu, senão da cabeça doida de um homem que eu amo tanto? E, se Deus me permitir, sempre vou amar.
(Ariano, emocionado com as palavras de Zélia, enche os olhos de ternura.) Ele olha para os amigos com um sorriso, como se visse, no caos daquelas figuras, um reflexo do seu próprio ser.)
Ariano.
(Em voz alta, decretando com convicção)
— Atenção! Lá vamos nós! A “flor vermelha que encanta” vai ser nossa! Está escrito, a gente vai colher esse prêmio, Padre João, e a reforma da igreja vai acontecer! Vamos botar dinheiro na porca, comer, beber e visitar a Fonte Cunhatã! Se Zélia não for em pessoa, vai em pensamento, porque ela está e sempre estará comigo e com todos nós!
(Todos aplaudem Ariano de pé, entusiasmados com a decisão.) O ambiente é tomado por risos e celebração.)
CENA FINAL
(Aos poucos, o grupo começa a se dispersar, se despedindo. A tapeçaria do ipê-amarelo balança levemente com a brisa, simbolizando a brasilidade que Ariano tanto ama.)
Padre João.
(Com os braços abertos, como se abençoasse a todos)
— Viva! Agora é preparar as malas e partir para Barueri!
João Grilo
(Rindo alto)
— Isso, pessoal! Vai ter muita comida e o prêmio tá garantido!
(Eles saem da casa um a um, como um bando alegre de andarilhos, deixando Ariano e Zélia sozinhos na sala. Ariano, com um olhar distante, coloca a mão no ombro de Zélia.)
(Ariano e Zélia, agora sozinhos, observam o grupo se afastando pela janela. A luz do final da tarde ilumina o cenário, deixando um ar de serenidade.)
Ariano
(Com um sorriso nos lábios, pensativo)
— Zélia, será que o prefeito vai manda todas passagens para um “maluco” e seu povo doido?
(Zélia sorri, enquanto observa o marido. O ipê-amarelo na tapeçaria parece brilhar com a luz do pôr-do-sol. Em algum lugar invisível, a “flor vermelha que encanta” começa a se iluminar.)
Zélia
(Rindo, enquanto abraça Ariano)
— Não sei, Ariano... só sei que foi assim.
(A luz da cena diminui lentamente, encerrando a peça.)
FIM
Sugestão de cenário:
Uma sala simples, mas com elementos da cultura nordestina: uma mesa de madeira, uma estante com livros, quadros nas paredes (um do Sport Recife, uma litografia de de Ariano e uma de Zélia). Há uma janela aberta, por onde entra a luz que da a impressão do sol quente nordestino. Uma tapeçaria com um ipê-amarelo está pendurada sob a janela. Ao centro, uma mesa de cozinha, ao lado uma cadeira de onde Ariano lê calmamente um livro de Dostoiévski, com um copo de água de coco ao lado. Sob a mesa um envelope grande com a flor vermelha de Barueri e as cores da cidade. Se houver como destacar a bandeira no envelope para que todos possam ver.